terça-feira, 10 de maio de 2011

Aristóteles e a ética da vontade




            A disciplina filosófica denominada Ética tem com os esforços sistematizantes de Aristóteles a sua delimitação, prioritariamente no que se refere à especificação de seu objeto, bem como de seu método de investigação[1].
            Neste sentido, é possível afirmar que a originalidade característica do pensamento filosófico de Aristóteles deve-se, fundamentalmente, ao modo através do qual desenvolveu suas reflexões – tanto no que concerne à realidade natural, quanto no que diz respeito à realidade humana.
            Embora não tenha sido o primeiro a considerar reflexivamente a moralidade (no sentido próprio da eticidade) como um objeto de análise investigativa – particularmente no que diz respeito à especulação filosófica –, Aristóteles foi o único que – no transcurso genealógico da história do pensamento filosófico grego – chegou a nos oferecer um tratado de ética destacado de temas ontológicos e epistemológicos[2].
              O próprio Aristóteles (no Livro I da Metafísica[3]) assinala rapidamente que Sócrates, por exemplo, também se ocupou com as questões morais... Ao que tudo indica, o ponto central das investigações do velho Sócrates baseava-se na preocupação em determinar o conhecimento essencial da verdade, sem o qual não se agiria corretamente... Aplicando, “pela primeira vez”, o pensamento às definições, a filosofia socrática inaugura o repertório discursivo acerca da moralidade.
Ainda nesta mesma passagem de sua Metafísica, o sábio Aristóteles (prosseguindo em suas observações) nos diz que, acatando a doutrina de Sócrates, o filósofo Platão defendeu que o problema da investigação dos fundamentos de toda a realidade [seja humana, seja natural] “(...) não podia versar sobre qualquer coisa sensível, uma vez que estas mudavam constantemente.[4]
Logo, muito embora o alvo de Aristóteles na sua Metafísica não seja, precisamente, a delimitação [historiográfica] da problemática moral – e sim definir o conhecimento das primeiras causas e dos primeiros princípios de todas as coisas[5] –, a referência a Sócrates e a Platão não é descabida.
Ora, sabe-se muito bem que a filosofia socrático-platônica vinculava, indistintamente, a especulação teórica e a reflexão ético-moral, supondo-lhes, finalmente, uma comunidade recíproca e originária.
Deste modo, portanto, Sócrates e Platão imputavam um valor de verdade e, também, de exatidão matemática ao conjunto dos valores moralmente aceitáveis – os quais, segundo Aristóteles, não existem por natureza; mas sim por convenção[6]. 
Em seu diálogo intitulado A República (e, portanto, bem antes de Aristóteles e de sua Ética a Nicômaco), Platão atribui, simultaneamente, à questão da justiça – relativamente à natureza do poder – um caráter prático-moral e epistemológico[7].
Segundo comentário de Benedito Nunes:
Desde a Antiguidade, o extraordinário prestígio de A República sempre esteve associado ao fascínio de seu plano do Estado  justo – da Cidade ou politeia, regida pelo ideal de Justiça – que proliferou, antes de chegar até nós pela via generosa do humanismo renascentista, dos estóicos na época helenística a Plotino na decadência do Império Romano. Estudada no Renascimento como fonte do pensamento moral e político da Antiguidade clássica, A República tornou-se por obra dos humanistas, a venerável utopia, modelo da Amaurotas, de Thomas Morus, e da Cidade do Sol, de Campanella. No entanto, a sua vasta formulação histórica correu à conta de um fenômeno bem mais extensivo e profundo: o pensamento mesmo de Platão, que trabalhou os alicerces metafísicos da cultura Ocidental. [8]

Portanto, neste texto [de A República] – pertencente à “maturidade”[9] da produção filosófica e intelectual de Platão – verifica-se um tratamento indiferenciado quanto ao uso da razão na sophia e na phrónesis[10].
Indissoluvelmente ligado a uma ontologia fundamental que – tanto do ponto de vista do interesse teórico, quanto do ponto de vista do interesse prático da razão –, identificava poder e a justiça, A República é uma obra central no pensamento de Platão, dando-nos uma visão retrospectiva e prospectiva de sua filosofia[11].
O Sistema Platônico das Formas Ideais baseava-se, absolutamente, na representação intelectual do Bem, o qual, por sua vez, constituía-se, de acordo com Platão, na origem do ser, da realidade, do conhecimento e da verdade, afigurando-se, também, em uma matriz diretora de nossas ações intersubjetivas e políticas[12].
Porém, qual a posição de Aristóteles em face do legado de seus antecessores, prioritariamente no que respeita às formulações próprias do dever ser da ação moral?
Émile Bréhier afirma que:
Todo o pensamento platônico repousava sobre a união perfeitamente íntima entre a vida intelectual, moral e política: a filosofia mediante o conhecimento, alcança a virtude e a capacidade de governar a cidade. Tudo isso se dissocia em Aristóteles. O bem moral ou prático, isto é, aquele que o homem pode alcançar por suas ações nada tem a ver com a idéia do Bem que a dialética situava na cúspide dos seres.[13]

Hans-George Gadamer[14] nos diz que o posicionamento de Aristóteles, diante à herança socrático-platônica, não se configura numa simples continuidade, pois a suposição de uma moral deduzida exclusivamente do intelecto é recusada veementemente por Aristóteles. Logo, estabelecendo a distinção entre os pressupostos fundamentais do saber teorético e do saber prático, Aristóteles distingue a ciência e a arte, inaugurando, pois, uma nova tradição, no que concerne ao uso da razão no campo da ética.



[1]Kant – no “Prólogo” de sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes – diz que a divisão da antiga filosofia grega em três ciências (física, ética e lógica) encontrava-se perfeitamente adequada à natureza das coisas – não havendo nada o que corrigir. Portanto, a lógica – segundo a definição do filósofo – é um conhecimento racional formal que se ocupa unicamente da estrutura do pensar (em geral), sem distinção de qualquer objeto. Diferentemente, porém, física e ética são os dois conhecimentos materiais da razão e que se ocupam de objetos, os quais – de acordo com o pensador – acham-se ou submetidos às leis da natureza (como no caso da física), ou submetidos às leis da liberdade (como no caso da ética).
[2]Cf. Gadamer. “Conferência 4: O problema hermenêutico e a ética de Aristóteles”, p. 47. In: FRUCHON, Pierre (org.).O Problema da Consciência Histórica. Trad. de  Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas Editora, 1998.
3Metafísica. L. I, 6  987b 5.  
[4]Idem. Ibdem.
[5]Idem. I, 1  981b 25-30.
[6]Aristóteles. Ética a Nicômaco; L I, 3.
[7]A República – ou: sobre a Justiça. Gênero Político. Introdução; I, p. 1 – 3º Ed., UFPa.
[8]Idem. Ibdem.
[9]Ao redigir o texto deste seu diálogo, Platão já se achava – consoante às palavras de Benedito Nunes – “(...) no meio do caminho da vida – de uma vida sem outra expressão biográfica senão a própria atividade intelectual que desenvolveu como chefe de escola – a Academia, fundada após a primeira viagem do filósofo à Sicília, em 387 a.C. – e como escritor excepcional e tenaz.” (Idem. Introdução; I, p. 2 – 3º Ed., UFPa). Assim, consoante aos quatro períodos em que se costuma agrupar os diálogos de Platão, quais sejam: juventude, transição, maturidade e última florescência –, o professo Benedito Nunes diz que: “A República situa-se, portanto, já dentro do período de maturidade, ao qual pertencem o Fedro, além do Crátilo e do Eutidemo, mas só apareceu no final desta fase, depois do Fedão e do Banquete, e antes da última florescência, que nos deu, a começar do Parmênides, a série dos diálogos da velhice, que finda com Leis.” (Idem. Introdução; I, p. 3 – 3º Ed., UFPa).
[10]Respectivamente, sabedoria teórica e sabedoria prática (esta com referência à ação moral, em oposição ao saber artístico, técnico).
11Idem. Introdução; I, p. 3 – 3º Ed., UFPa.
12Cf. A República. L VI – VII.
[13]Émile Bréhier. História da Filosofia; Trad. de Eduardo Sucupira Filho, Capítulo IV,  pp. 190-191. São Paulo, Editora Mestre Jou, 1977.
[14]Gadamer. “Conferência 4: O problema hermenêutico e a ética de Aristóteles”, p. 47. In: FRUCHON, Pierre (org.). O Problema da Consciência Histórica. Trad. de  Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas Editora, 1998.

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